Por Leonardo Fuhrnann | O Joio e O Trigo – Foto: CPT Maranhão
Moradores apontam assoreamento de riachos, igarapés e lagoas, fim de caças, perda de árvores medicinais e queda de produtividade nas roças
A água contaminada por agrotóxicos é mais uma das ameaças do latifúndio contra a comunidade quilombola Cocalinho, em Parnarama, no Maranhão. O líder comunitário Leandro dos Santos conta que os problemas começaram em 1982, quando grileiros começaram a tentar tomar as terras do povo.
Na ocasião, os invasores investiam na criação de gado. Os registros da presença dos quilombolas no local datam do final do século 18 e começo do século 19. “A gente só não foi expulso das terras por causa da atuação da Comissão Pastoral da Terra e dos movimentos nacionais de proteção aos quilombos”, diz. No local, vivem, atualmente, 170 famílias.
A situação se agravou no fim dos anos 2000, com a chegada da Suzano Papéis e Celulose. “Naquele momento, teve início a monocultura de eucaliptos e muitos lagos e igarapés secaram, porque esse tipo de árvore consome muita água”, conta.
Segundo ele, se deu ali o começo do uso de agrotóxicos em torno do território. “Eles usavam bombas manuais”, explica. A presença da empresa também teve impacto no modo de vida em Cocalinho. “Eles não chegaram a destruir o nosso cemitério tradicional, mas o cercaram e passaram a impedir a nossa entrada”, diz. A solução foi a construção de um novo cemitério para enterrar os mortos.
Com a saída da Suzano, na década seguinte, a região recebeu a chegada da monocultura de grãos, com a aplicação de agrotóxicos com aviões e tratores. “Os nossos cultivos perderam a qualidade, não se desenvolvem como antes”, relata Leandro.
O avanço do veneno também teve impacto nas criações de animais de pequeno porte, nas plantas nativas, como a aroeira e a mangabeira, de uso medicinal, e o pequizeiro. Muitas caças, como o tatu, o jabuti, a guariba e a cotia, e aves, como o juriti, sumiram.
Foto: CPT Maranhão
Bahia: reforma agrária às avessas
A violência foi uma das maiores ameaças aos geraizeiros de Formosa do Rio Preto, na Bahia. Ao todo, são 120 famílias divididas em cinco comunidades. Mesmo com o reconhecimento de ser um território tradicional, eles vivem sob a ameaça de uma propriedade vizinha, o Condomínio Cachoeira do Estrondo.
Os latifundiários são apontados como responsáveis por incêndios criminosos, grilagem e ameaças. “Até 2017, quando foi feito um acordo judicial, eles tinham guaritas até dentro de nosso território. Paravam carros e pedestres, revistavam todo mundo, impediam a gente de criar gado solto”, revela uma líder comunitária, que prefere não se identificar, por receio de retaliação.
Os seguranças do condomínio também impediam o extrativismo do buriti e do capim dourado. O fruto do buriti é usado na alimentação, as folhas para o artesanato. A árvore também tem utilidades na produção de enfeites, utensílios domésticos, remédios, cosméticos e brinquedos. O capim dourado é bastante usado em atividades artesanais.
Atualmente, além da contaminação das nascentes de água, a comunidade sofre com os assoreamentos causados pelas curvas de nível. “Quando começa a temporada de chuvas, o barro desce para o nosso território”, conta.
Segundo Martin Mayr, da Agência 10envolvimento Cerrado, da Rede Cerrado, as comunidades estão perdendo hábitos seculares, como as plantações em brejos na época da estiagem. “A água do aquífero está brotando menos e mais distante da comunidade”, conta. Ele aponta, também, o risco da “grilagem verde”, em que os proprietários de terras declaram as áreas das comunidades tradicionais como reserva legal das propriedades.
Problema semelhante é apontado por Pedro Antônio Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Tocantins, no Território Serra do Centro, em Campos Lindos (TO), o que pode restringir as atividades dos camponeses dentro do próprio território. “O ex-governador Siqueira Campos [PL] entregou 85 mil hectares na região para fazendeiros residentes em outros estados e políticos locais instalarem a monocultura, com sobreposições a áreas da comunidade tradicional”, destaca. “A inversão de valores é tamanha, que eles chegaram a pedir a reintegração de posse da área em que vivem as cerca de 200 famílias, divididas em oito comunidades. Foi uma reforma agrária às avessas”.
Os moradores apontam ainda um aumento de insetos e espécies invasoras nas roças tradicionais e na produção de base familiar. “Eles [os latifundiários] jogam o veneno lá em cima e as pragas vêm todas para onde ficamos. Só o arroz resiste, morre o feijão, a melancia, a abóbora e todo o resto do que plantamos”, diz outra líder comunitária que prefere não revelar o nome. Segundo ela, a comunidade já evitava a água dos rios e usa só os poços para o abastecimento das casas. Eles também evitam pescar, por medo da água contaminada do rio.
Os casos de Cocalinho, Serra do Centro e dos geraizeiros do Vale do Rio Preto fazem parte da petição da Campanha Nacional do Cerrado apresentada ao Tribunal Permanente dos Povos em novembro de 2019.
O veredito apresentado em 2022 foi de condenação do Estado brasileiro pelo ecocídio do Cerrado e o genocídio de 15 povos tradicionais e originários do bioma. Foram condenados também governos estaduais, organizações multilaterais e governos internacionais, empresas brasileiras e multinacionais, inclusive fundos de investimento, pelo envolvimento na destruição ambiental, e das condições de vida da população local.
Piauí: prisioneiros do agronegócio
A proximidade com os geraizeiros da Bahia e a semelhança de problemas vividos levou a Campanha a tratar também da situação da comunidade de Barra da Lagoa, em Santa Filomena, no Piauí.
São doze famílias de ribeirinhos e brejeiros que vivem da agricultura familiar, pesca, coleta e criação de pequenos animais. Eles vivem em estado de insegurança jurídica quanto à posse da terra e restrições à livre circulação no território, além dos problemas com a contaminação da água. “Muitas vezes, essa população precisa mudar rotas de passagem por conta dos obstáculos criados pelos seguranças das fazendas, inclusive dentro do território comunitário”, conta Maria das Mercês Alves de Souza, da CPT do Piauí.
Segundo outra moradora, a comunidade perdeu a liberdade de circular. “Passamos a ter um território limitado. Não dá mais para caçar, tirar mel, deixar o gado solto. A monocultura trouxe junto a mosca branca, que tem destruído as lavouras de agricultura familiar”, diz.
Centro-oeste: o fardo do latifúndio
As outras comunidades analisadas foram o Acampamento Leonir Orback, em Santa Helena, Goiás, onde vivem, desde 2015, 170 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Lá, além do problema da contaminação, incêndios criminosos e desmatamento causam doenças respiratórias na população. A água do acampamento tem sido apropriada pelo agronegócio para irrigação dos monocultivos.
Outra comunidade relatada é a Cumbaru, em Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso. O nome do povoado tradicional é devido à atividade agroextrativista da coleta da castanha do cumbaru, ou simplesmente baru. A espécie é considerada crucial para a preservação da fauna e da flora do bioma, além do fruto ter utilidades alimentares e medicinais. A contaminação da água, solo e aérea da região, segundo os moradores, provoca problemas de saúde, como dores de cabeça e dificuldades para dormir.
No Mato Grosso do Sul, a situação analisada foi do Assentamento Eldorado II, em Sidrolândia. A área é formada por 750 lotes titulados, onde vivem aproximadamente setecentas famílias. Sem políticas públicas para a agricultura familiar e sob a pressão dos latifundiários da região, muitos moradores concordam em arrendar terras para a produção da monocultura de grãos.
Os antigos camponeses passam a trabalhar nas lavouras como aplicadores de agrotóxicos, usando bombas costais e nem sempre o equipamento de proteção individual (EPI). Além de deixá-los mais vulneráveis individualmente, a (i)lógica do agronegócio os obriga a carregar – dos corpos até as comunidades em que vivem – o fardo dos riscos associados aos agrotóxicos.
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