“A Amazônia – isso diz quem dela sabe – foi plantada por mulheres e homens que lá viveram uns tempos antes desses. Um grande jardim. Que imensas são essas pessoas que regam flores gigantes? Na Amazônia tudo é grande: rios, peixes, árvores, encantos e problemas. Tu nasceste lá, parida pelo grito da terra e dos povos dela. Periférica. Como é nascer de um grito? Esses dias fez quatro décadas e meia”. Confira a Carta feita por Marcelo Baros e João do Vale à CPT, no marco de seus 45 anos de existência.
Marcelo Barros[1]
João do Vale[2]
Quem veio ao cosmos em uma ditadura militar sabe bem a contravenção de – em um regime de exceção e terror do século XXI – celebrar a teimosa aventura da vida. O que foi ter dez agentes pastorais assassinados logo em seus primeiros anos? Foste batizada no sangue! E camponesas? E camponeses? Moinho de gente esse Brasil colonial. És da terra. É por isso que sabes que a terra a ninguém pertence e todos/as a ela pertencemos? É por isso que continuas a denunciar a morte da natureza e a dos povos dela? Tiveste a felicidade – talvez por ser filha de quem és – de perceber que o capitalismo na América Latina se faz explorando gente e matando rio. Escravizando gente e derrubando floresta. Assassinando gente e extraindo minério. Na euforia progressista, foste corajosa. Denunciaste o desenvolvimento, que era muito mais uma ilusão que antecipava o suicídio. Por que para desenvolver temos que destruir o nosso mundo? Muitos não gostam de ti. Que bom. Que bom. Maldita CPT. Como o Jesus que segues. Bendita tua memória subversiva. Amor preferencial pelos pobres, não é isso? E tu acrescentaste a terra, aquela que, como os corpos pobres, é massacrada e transformada em PIB e propaganda. Dos/as injustiçados/as, escolheste não estar ao lado, mas no meio. Quem está ao lado vê de lado, pela metade. Quem está no meio não tem olhos para outra coisa senão para aquilo que te arrodeia: o povo e a terra. A Profetisa, o profeta – isso diz quem dessas coisas sabe – também vai no meio. Não vai na frente, como quem puxa ou como quem guia alguém que não vê. Também não vai atrás, como quem não tem coragem nem de falar, nem de lutar. Vai no meio, vai junto, comendo o mesmo pão, passando a mesma fome e rompendo o mesmo arame. Arrisca-se porque o risco que se tem é arrancar com as mãos uma nova civilização. A história – é bom não esquecer – se faz com mãos e corações. E os gritos, o que dizem hoje? Pedem uma nova profecia – ou apenas que ouçamos uma antiga?
E pode não ir até o fim alguém filha da paixão
que o coração arde e os olhos brilham?
E essa existência que grita:
mundo novo?
Nem as balas
nem as rodovias
nem o progresso
nem os projetos
te derrubaram
És da terra!
como uma sumaúma
que espalhou suas sapopemas
nas veredas de um país ainda colonial
Por quem gritam as vítimas do racismo?
O que gritam as mulheres de todos os jeitos violentadas?
escuta
abraça-se à profecia
arrisca
e risca do chão do mundo
todas as cercas
adelante pastoral da terra
filha da terra
um dia a tua paixão
– e a do povo e a da terra –
será ressurreição.
sem o peso do poder que esmaga
seremos apenas festa
e dançarão
sem medo do chicote ou do pecado
os nossos corpos
e os nossos sonhos
O futuro não é mais uma certeza. Os povos da terra estavam certos. O cambio climático, a destruição da natureza e todas essas doenças importadas dizem que mudar de rumo não é mais uma opção, mas o único caminho que nos levará para fora do abismo. Um mundo novo já não é mais uma alternativa, mas a única possibilidade, ou não teremos mundo nenhum. E esse outro mundo, possível e necessário, até onde se sabe, só poderá ser construído nesse mundo que nos tem. Ao total, quantos/as camponeses/as presos/as? Quantos/as agentes torturados/as? Quantos/as defensores/as da terra assassinados/das? Nas últimas semanas perdemos várias lideranças indígenas, verdadeiras bibliotecas cosmológicas. Quem assumirá a tarefa de contar a história? O que dirão do cristianismo se não assumirmos a luta em sua radicalidade, com seus riscos e belezas? Beleza é o que não falta nesses anos de caminhada, não é Pastoral da Terra? Não haveria como resistir se no lugar que esteve cada passo não houvesse brotado um motivo de celebração da vida. Espalha tuas sementes crioulas, CPT. Semeia multidões. Faz da festa, do canto e do afeto – essas coisas tão nossas e que tanto ódio provocam aos opressores – um alimento diário. Prepara-te pra colher subversões, porque a luta por justiça, em um sistema opressor, é o melhor jeito de se aproximar de Deus.
24 de junho, dia de São João, Xangô menino
Olinda/Recife.
[1] Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e esteve por muitos anos no secretariado nacional da Comissão Pastoral da Terra.
[2] João do Vale é educador popular e agente pastoral na Comissão Pastoral da Terra em Pernambuco.
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