Mais de 15 anos após o assassinato da missionária Dorothy Stang, conflitos de terra se agravam no município paraense. Queimadas aumentam em projetos de assentamento em consequência de invasões, desmatamento e grilagem.
Por Guilherme Guerreiro Neto, de Belém (PA)
Foto: DPE/PA.
Três assentamentos localizados em Anapu, no Pará, viram crescer os focos de queimadas nas últimas semanas. As áreas são pressionadas por práticas de grilagem, degradação ambiental e ameaças a lideranças comunitárias. Este mês, a Justiça decretou reintegração de posse da Fazenda Sombra da Mata, sobreposta ao Projeto de Assentamento (PA) Pilão Poente III, e uma ação civil pública pede fiscalização contínua para conter os crimes socioambientais nos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá.
“A gente sabe que aqui custou uma vida. A vida da irmã Dorothy foi embora. A gente tentou preservar essa floresta. Mas, infelizmente, de um certo tempo pra cá, bagunçou. O povo não tá respeitando a reserva”, conta uma liderança local que prefere não ser identificada.
Os conflitos nos assentamentos de Anapu são crônicos, passam pelo assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005, e permanecem impondo violência 15 anos depois. Desde então, pelo menos outras 21 pessoas foram assassinadas em conflitos por terra no município, segundo o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino da Comissão Pastoral da Terra.
O desmatamento e as queimadas são usados como instrumentos para tomar posse da terra e inviabilizar a existência dos projetos que abrigam os assentados. Entre 1o e 26 de outubro, foram registrados 155 focos de calor nos PA Pilão Poente II e III. Já os PDS Esperança e Virola-Jatobá, concentraram 102 e 75 focos, respectivamente, no mesmo período. Nos três casos, os dados de queimadas em outubro representam cerca de 65% de todos os focos registrados em 2020 nesses assentamentos, pelo satélite S-NPP da Nasa.
O fogo também é usado como arma. No início de outubro, a residência de uma família em área atingida pela grilagem nos limites do Pilão Poente sofreu um ataque e foi toda queimada. O pedido de reintegração de posse no Pilão Poente registra essa queimada criminosa, e pede a reintegração contra Moacir Inácio dos Santos e Joana Bezerra Brito, por se apossarem de área pública e impedirem o trânsito de pessoas pela Vicinal Catarina, construída pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com apoio de verba do município de Anapu.
A retirada dos grileiros já havia sido determinada antes, mas foi suspensa por conta da pandemia do novo coronavírus e dos riscos de contaminação. No processo em que defende a urgência da medida, o procurador Matheus de Andrade Bueno, do Ministério Público Federal (MPF) de Altamira (Pará), aponta a tentativa, por parte dos acusados, de usar a pandemia para acelerar o processo de grilagem, ao citar que a área foi registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) em março deste ano.
“Esse caso do Pilão Poente é um caso emblemático, mas não é um caso isolado no contexto de Anapu. Há uma espécie de rede de grilagem, uma atuação sistemática, histórica, de grilagem na região, baseada na lógica de invadir e desmatar, com o intuito de tentar legitimar alguma forma de acesso a terras públicas. Não é apenas uma disputa de propriedade em si, mas uma disputa do sentido da terra: se a terra vai servir a uma forma predatória de produção ou se aquilo vai ter algum respeito socioambiental”, explica o procurador.
Conflito entre modelos de produção
A lógica de grilagem e degradação não atinge apenas assentamentos convencionais, da modalidade PA, como o Pilão Poente. Também alcança os PDS, tipo de assentamento que prevê atividades ambientalmente sustentáveis e titulação coletiva da terra, incluindo uma área de reserva legal [área destinada legalmente que deve ser mantida com vegetação nativa]. A ação civil pública aponta a multiplicidade de focos de desmatamento e queimadas nos PDS Esperança e Virola-Jatobá, além do aumento da retirada de produtos vegetais, como o acapu, espécie madeireira ameaçada de extinção que é encontrada nessas terras.
A pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (Ineaf/UFPA) Noemi Miyasaka Porro vê ao menos dois perfis diferentes no mercado ilegal de terras instalado no PDS. Um deles seria o dos invasores: “eu acho que os que declaram um CAR de 200, 300 hectares, ou são grileiros, ou são fazendeiros. São empresários que vão comprando esses lotes de reforma agrária, vão desmatando, colocando pasto, fazendo a venda de toras. Ou que vivem só dessa compra e venda de lote. Esses maiores eu colocaria numa categoria. Seriam empresários rurais, eles vivem disso. São claramente invasores.”
“Mas tem um outro perfil, do agricultor familiar, que em algum momento foi perdendo vínculo com a sua terra e já está passando pelo terceiro, quarto, quinto assentamento. Intencionalmente ou não, acaba sendo peça importante desse mercado. É um invasor? Não. Integra uma família de agricultores familiares sem terra, que está em deslocamento, se assenta ali e, eventualmente, se agrega a esse grupo do PDS”, complementa a pesquisadora.
O Virola-Jatobá foi criado em 2002. Em 2017, houve uma grande invasão nesse PDS. Cerca de 200 pessoas armadas, entre grileiros e madeireiros, demarcaram a área da reserva legal com intenção de lotear. Em 2018 e 2019, foram retiradas do PDS, mas os invasores acabam voltando. A conta da destruição de floresta causada por pessoas alheias ao projeto de reforma agrária depois recai sobre os assentados, na medida em que, para o licenciamento ambiental, é apresentada como exigência a recomposição de áreas invadidas e degradadas.
Com Dorothy Stang como importante mobilizadora, a criação do Esperança também data de 2002. A reserva legal desse PDS foi invadida em abril de 2018 duas vezes, sendo que a segunda reuniu cerca de 40 pessoas, também com desmatamento e demarcação de lotes. As invasões no Esperança e no Virola-Jatobá são relatadas na ação civil pública requerendo ação integrada da União, do Incra, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do estado do Pará para fiscalização contínua desses projetos de desenvolvimento sustentável.
“O que está em jogo, no caso dos PDS, é o próprio modelo de Projeto de Desenvolvimento Sustentável. É a destruição da floresta como uma forma de inviabilizar a discussão se será um PDS ou não, porque essa modalidade de assentamento pressupõe a existência de uma área ambiental que possa ser explorada de forma sustentável. Sem área de floresta, isso não é possível”, explica Matheus de Andrade Bueno, do MPF.
Terras de destino incerto
Além dos PA e PDS, preocupa o Ministério Público a ocupação irregular e o desmatamento em áreas públicas localizadas no município que não foram destinadas. Para o procurador, a ocupação dessas áreas não destinadas por assentados seria uma forma de proteção ambiental, além de instrumento de justiça social. Bueno pontua as reintegrações de posse e as medidas de proteção a pessoas ameaçadas como as duas abordagens emergenciais no contexto de conflito em Anapu.
Quem defende as terras coletivas costuma ser pressionado. “Pessoas que estão defendendo, que nem eu, são ameaçadas. O negócio aqui pra mim não é fácil, não. Eu teimo muito, eu luto pela verdade. Mas é perigoso, não é fácil, não”, diz a liderança do PDS Esperança ouvida pelo InfoAmazonia.
Em nota, o Incra afirma que identificou ocupações irregulares em assentamentos no município de Anapu, que resultaram em processos administrativos e judiciais em curso de retomada de áreas exploradas irregularmente. Em relação às denúncias de desmatamento, o Instituto informa que solicitou atuação do Ibama e da Secretaria de Meio Ambiente do Pará para fiscalizar e punir as denúncias de crimes ambientais. Segundo o órgão, quando comunicadas, as ameaças contra famílias assentadas nos projetos em Anapu são encaminhadas à Secretaria de Segurança Pública do Pará, para investigação policial.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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